quarta-feira, 13 de agosto de 2008

NAS ÁGUAS DE UMA GRANDE ARTISTA



Um ambicioso projeto banhado em águas inspiradas. Maria Bethânia lança simultaneamente dois álbuns falando sobre rios e mares. Mar de Sophia traz a água salgada da maturidade de Bethânia, cantora de rigoroso depuro artístico e projetos bem conceituados, fechados em uma idéia. Já Pirata tem um quê de menina, com as lembranças da infância à beira do rio no recôncavo baiano.

Dentro do mar tem um rio: a frase ouvida por Bethânia e levada para a música através de uma poesia de Capinam resume e batiza o ambicioso projeto. Enquanto o país fala em crise da indústria do disco e muitos artistas apelam para um repertório mais fácil e óbvio, Bethânia veste sua coroa de rainha absoluta. O apuro de sua interpretação encontra um conceito fechado e bem definido em um trabalho que vai além do ofício de uma cantora popular.

Com o tempo Bethânia se tornou um artesã da música. Uma artista de atitudes discretas, obras bem delineadas e realizações majestosas. Um disco de Maria Bethânia é bem mais que um punhado de canções; é um painel musical focado em uma idéia, uma pequena jóia lapidada com carinho e esmero. Essa liberdade de criar encontra sua plenitude quando Bethânia sai da grande indústria tradicional para se aliar ao cast da gravadora Biscoito Fino. E vai ao extremo quando a cantora cria o Quitanda, seu próprio selo, voltado especialmente para trabalhos tidos como menos comerciais, mas que rendeu um dos maiores discos e shows da década, Brasileirinho, de 2003.

Admirada por sua habilidade particular de costurar músicas e poesias, Bethânia passeia com desenvoltura entre os textos da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner e as músicas de grandes compositores brasileiros. O CD Mar de Sophia se rende em homenagens a escritora e suas águas. Entidades africanas se casam com a literatura portuguesa e a música brasileira em uma colcha de retalhos bem amarrados.

Bethânia abre espaço para poesia de Drummond musicada por Sueli Costa. "O mundo é grande e cabe nessa janela sob o mar", diz o poeta brasileiro que na costura de Bethânia encontra a colega portuguesa e as cirandas populares. Em águas profundas e algumas vezes escuras Bethânia tem espaço para uma criação coletiva dos Titãs e para As praias desertas de Jobim; cabem rápidas inserções pela obra de Caymmi e composição do sobrinho Jota Velloso; tem espaço para o irmão Caetano e para Chico César; para um canto de Toquinho e Vinicius e para Villa Lobos.

A participação da especial percussão de Naná Vasconcellos ajuda a costurar as idéias de Bethânia em informações que, a princípio, podem parecer distantes. Mas que, nas mãos da artista, se tornam um trabalho bem fechado e coerente.

Já em Pirata Bethânia se banha nas lembranças da infância em Santo Amaro. As águas doces dos rios que banham o recôncavo baiano trazem a menina encantada e deslumbrada. Desde a alegre arte do encarte, lúdica e colorida, personagens da infância de Bethânia dançam e prestam suas oferendas aos deuses da água. "Eu sou memória das águas", canta em composição do conterrâneo Roberto Mendes e Jorge Portugal.

De sua cidade traz também o irmão Caetano em Os argonautas e Onde eu nasci passa um rio, duas composições da década de 60. Das memórias de sua infância resgata o rico cancioneiro brasileiro com peças do folclore e cantigas populares, um domínio público que faz parte da formação cultural e da criação de sua gente.

Quem não nasceu perto do mar tem o leito dos rios como referência das águas. Assim trechos da obra do mineiro Guimarães Rosa pontuam Pirata como a parceria de Ana Carolina e Jorge Vercilo. Na letra a compositora confessa e entrega: "Eu que não sei quase nada do mar/Descobri que não sei nada de mim". A música foi a primeira escolhida a freqüentar as rádios.

A essencial parceria com Jaime Alem, seu maestro há mais de 20 anos, é cada vez mais rica para a obra de Bethânia. A cantora encontra no músico a tradução exata de suas idéias musicais. Jaime traz a viola do interior do Brasil e encontra o violão popular com bom gosto único e arranjos grandiosos em sua simplicidade.

Comemorando seus 60 anos a artista tem uma oportunidade rara de ter em catálogo toda sua obra. Acompanhar a evolução de Bethânia é um saudável exercício. No final a conclusão é que o diamante está cada vez mais lapidado e, com a maturidade, a artista atinge um nível de riqueza poucas vezes visto na cultura popular. Mas é muito cedo para se falar em auge, já que mais do que nunca Bethânia está em franco processo de criação. Sua obra não se acomoda e gera novas águas a cada temporada. Celebrar sua nova produção não é surpresa, mas um prazer constante e sublime.

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