terça-feira, 12 de agosto de 2008

Rainha das águas e dos ventos


Maria Bethânia: “Fiquei impressionada com a beleza como a Sophia conduzia o sentimento dela em relação ao mar, com uma intimidade que eu não conheço em uma mulher” (Foto: Leonardo Aversa/Divulgação)


Henrique Nunes
Enviado ao Rio de Janeiro


Maria Bethânia ainda não respira ´debaixo d´água´, como sugere Arnaldo Antunes, em uma de suas novas interpretações. Mas em torno dela, a doce santo-amarense continua fluindo seus orixás e sua realeza. E tecendo seus novos bordados poéticos e sonoros, ´Pirata´, dedicado às águas doces, e ´Mar de Sophia´, ao mar... Claro, ´dentro do mar tem rio´, conforme lembra Capinan em um verso de ´Beira-Mar´ que acabou batizando todo o projeto (os lançamentos e o show) e representando a interação destas águas. Na última sexta-feira, a supersticiosa rainha das boas águas da música brasileira catalisou a imprensa de parte do Nordeste, Sul e Sudeste para falar sobre seus novos elementos de (re)criação

Passados 35 anos de sua interpretação mais derramada, no show ´Rosa dos Ventos´, dirigido pelo ainda parceiro Fauzi Arap, a intérprete volta a confluir, nestes dois álbuns, as duas principais manifestações deste elemento: o rio (e ainda a cachoeira, o lago, as águas doces de Oxum) e o mar (de Iemanjá). Algumas destas águas, inclusive, já haviam sido movidas por Bethânia naquele show - e em álbuns anteriores. Mas, como sugere Jorge Portugal, ´águas que movem moinhos nunca são águas passadas´, segundo sua inspirada ´Memória das Águas´, em parceria com Roberto Mendes.

Uma confluência mansa, precisa, mas ainda vigorosa, dentro da linha mais brejeira interposta por ela ao lado do arranjador Jaime Alem, desde o álbum e o show ´Brasileirinho´. Com repertórios mesclando timbres mais serenos e mais carregados, ´conduzidos por Jaime´ entre valsas, canções, cirandas e sambas-de-roda, os novos álbuns de Bethânia banham-se ainda nas águas declamadas em torno do doce Guimarães Rosa (´Pirata´) e da marinhista portuguesa Sophia de Mello Breyner (´Mar de Sophia´), entre outros poetas como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa.

O passo miúdo, a faceirice ´toda de branco´, mas, claro, sem o bonezinho do ´Marinheiro só´, consagrado pelo mano Caetano, Bethânia chega pontual à entrevista, que se conduziria por questões mais pessoais do que propriamente musicais, ao longo da próxima uma hora e meia. Houve até críticas ao projeto de transposição do Rio São Francisco, sugeridas também na faixa ´Francisco, Francisco´, de Roberto Mendes e Capinan. ´Não posso falar muito, mas acho estranho. Mexer em leito de rio eu acho errado´, esvoaçou.

Mas tudo sem maiores ´procelas´, para usar um termo caro ao novo repertório. Um poema de Sophia (veja ao lado), sobre o qual Bethânia se derramara, há pouco, nos extras do DVD ´Tempo Tempo Tempo Tempo´... Sophia e uma casual frase de uma conterrânea (´Dentro do mar tem rio´), embriões de projetos para os quais foi, então, instigar seus compositores mais diletos, de Capinan e Vanessa da Mata, ao conterrâneo santo-amarense Antonio Vieira, a produzir-lhe umas (belas) canções inéditas. ´Sou privilegiada de conviver com compositores importantes para a música brasileira, dos poetas, inclusive portugueses, mas também das cantigas anônimas do interior, de onde eu sou´. Cancioneiro que, nos dois álbuns, flui à vontade, passível de ´tirar um pouco a dureza´ do dia-a-dia de todos, como uma expressão de liberdade.

´Foi ao me aproximar da poesia de Sophia, que eu comecei a pensar em fazer um trabalho sobre a água´, esclareceu ao início da entrevista, na sede da gravadora Biscoito Fino. Uma aproximação cujo tempo ela não precisa, mas que fora intermediada pelo escritor, também português, Antonio Alçada Batista, a quem dedica ´O mar de Sophia´, poetisa falecida em 2004 e ainda inédita no Brasil. ´Fiquei impressionada com a beleza como ela conduzia o sentimento dela em relação ao mar, com uma intimidade que eu não conheço em uma mulher, poeta. O mar é um elemento normalmente ligado ao homem, ao marujo, ao ´lobo do mar´. Essa intimidade dela é até mais própria, no meu entender´, acrescentou.

O mar que, meninota, uns cinco anos, ela conheceu indo, a vapor, para a capital. ´Uma saída de onda verde, azul, esmeralda... Medo, pavor e uma atração infinita´, lembrou. Já sobre ´Pirata´, cuja faixa-título desponta n´ ´O mar de Sophia´, ela o considerou um projeto mais intimista e ao mesmo tempo mais despojado, como todos lançados pelo seu selo, Quitanda, onde ela pode ´brincar um pouco, esquecendo os 60 anos e os 42 anos de carreira´, de uma obra recentemente relançada em CD e que constataria seu aprimoramento como intérprete. ´Isso vem com o tempo, tudo melhora com o tempo, com o exercício de cantar´. Mas, ao contrário do que sugerem os dois novos projetos, inclusive por sua simultaneidade, Bethânia preferiu ressaltar a diferença entre as águas, negando um ´elo´ maior entre eles.

´O encontro das águas pra mim tem um significado bem diferente, porque eu sou da Igreja Católica, mas sou também da religião africana. E encontro de águas é lugar de reverência, de perfume, de flor, de oferendas. Então, quando fala, ´encontro das águas´, eu tremo um pouco´, ri-se, antes de anunciar que no show ´Dentro do mar tem rio´ (que estréia dia 10, em São Paulo, com roteiro de Bethânia e do velho amigo Fauzi Arap, sob a direção de Bia Lessa), aí sim, haverá uma ´misturada´ dos dois álbuns entre outras canções ´com alguma natureza aquática´ de seu repertório. Sem esquecer algumas adequações melódicas, entre a ´Saudade mata a gente´ (João de Barro e Antonio Almeida) do ´Pirata´ e a ´Gostoso demais´, de Dominguinhos, por exemplo. Outra certa é ´Atiraste uma pedra´, de Herivelto Martins e David Nasser, da lavra dos Doces Bárbaros.

Assim, naturalmente, Bethânia nos conduz a referências mais pessoais, sobretudo em relação à sua espiritualidade afro-brasileira, vivenciada outras vezes nestes novos projetos. Bethânia e os orixás. ´A água, pra mim, é um elemento imprescindível. Um elemento de grande força, de grande beleza, ligado à mulher, à energia, à delicadeza, à força. É um elemento que me comove, eu não posso ficar muito tempo longe de água´, ponderou, remetendo, em seguida, às suas origens junto ao mar ´palha, meio mangue´ do Recôncavo Baiano.

Aos entendedores da filosofia da umbanda, Bethânia se declarou ´de Iansã´ (orixá dos ventos e ´procelas´) e ´de Oxum´ (orixá das águas doces), segundo soube há muito tempo, no célebre terreiro de Mãe Menininha do Gantois. ´Isso pra mim é ´dentro do mar tem rio´´, definiu. Por isso mesmo, o estribilho de ´O vento´ a ajudou a conduzi-la por suas águas, em uma das raras presenças do velho cantador do mar, Caymmi. Por isso mesmo, Bethânia não abriu mão de convidar um expert nos timbres de todos os orixás, a dar, feito Nanã (divindade das águas de junção entre o rio e o mar), a liga sonora necessária ao envolvimento perfeito entre os cânticos de louvor às entidades e a procelária poética de Sophia de Mello Breyner: estamos falando do percussionista Naná Vasconcelos. Uma proteção a mais para uma Rainha que já definiu, ao cineasta Georges Gachot, a fluidez da música como uma fragrância, um perfume, e agora a espalha não só pelo ar, mas também pelas águas.

“Procelária”
(Sophia de Mello Breyner)

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas, empresta
À tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha, o cabo, o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer, seu alimento

Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo

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