segunda-feira, 25 de agosto de 2008

MARIA MAIA ENTREVISTA SOPHIA B. ANDRESEN

Entrevista
Maria Maia entrevista Sophia de Mello Breyner Andresen(em Jornal de Poesia, Lisboa, 10 de Maio de 2000)

Maria: Quando estive aqui com o Fernando Mendes Vianna há dois anos, a sra falou um pequeno trecho da Odisseia em grego. Falou de memóriaSophia: Falei em grego? Eu não sei grego, só uns versos.
Maria: Falou alguns versos... a senhora é muito marcada pela visão do mundo grego?Sophia: Sim, sim, evidentemente.
Maria: Como assim?
Sophia: É natural, não é? É muito parecido. Como na Grécia tem a mesma cor, se come azeitona, figo, azeite. É como a Itália, não? Sabe, nós não sabemos ao certo como nos marcam as coisas que verdadeiramente nos marcaram. É como um amigo que perguntou: como fazer verso?
Maria: Não se explica.
Sophia: Eu pelo menos não explico. Só as pessoas que fazem maus versos podem explicar. O que marcou e o que fez verso.
Maria: Quando a senhora começou a escrever?
Sophia: Quando comecei escrever eu não sabia escrever. Eu tinha uma pena enorme (rindo ). Eu pedi a minha mãe papel e caneta. Escrevia uma grafia que eu tinha imaginado, imagine você...Uns desenhos de umas letras inventadas por mim. Eu contava em voz alta.
Maria: Muito criança ainda, antes de ser alfabetizada?
Sophia: É. Foi. E depois aprendi a ler e a escrever. Comecei a escrever cedo, sim. 14 anos, 12 anos. Primeiro mal, depois melhor, não é?
Maria: E publicou com uns vinte e poucos anos.
Sophia: 23 ou 24, já não lembro mais. Primeiro livro, sim. (pausa. Retoma decidida). Não, publiquei antes. Em revistas e coisas assim. Depois publiquei um livro. Creio que aos 24 anos. Maria: Isso em 44. O livro Poesias, não é?
Sophia: Poesia. No singular.
Maria: Poesia. É. Depois então em 64 ganhou um prémio importante aqui em Portugal.
Sophia: Um prémio importante? Sim, foi no ano passado.
Maria: O prémio Camões, no ano passado. Mas em 1964 um livro de poesia da senhora já tinha sido premiado.
Sophia: Sim.
Maria: E sua relação com a poesia brasileira, conheceu poetas brasileiros?
Sophia: Bem, eu acho que tive uma relação muito profunda com o João Cabral e com as coisas que ele procurava ( pausa ). Eu não pensava muito nisso. Nuca tive muita teoria. Fui sempre uma pessoa muito antiteórica. Mas encontrei muita coisa. Quando encontrei João Cabral ele disse-me assim: eu tenho muita admiração por si...que é que ele disse? ( pausa) como é que foi que ele disse? (procurando na memória) ...porque você é uma poeta que usa muito substantivo concreto.( ri ). Eu pensei: é? Mas é verdade, não é? Nos encontramos em Sevilha. Nós fomos com uns amigos brasileiros que iam lá convidados pelo João, para a casa dele. E o João disse: por que vocês não vêm e ficam no hotel? E fomos e ficamos num hotel lindo que o João descobriu. Era lindo, era um antigo palácio de uma família sevilhana. Já não existe, sabe? ( dando um trago no cigarro). Já destruíram ( jogando as cinzas no cinzeiro). O turismo é uma desgraça em toda parte do mundo, não é?
Maria: Vai acabando tudo, nivelando, pasteurizando... O encontro com João Cabral foi quando ele era cônsul em Barcelona, não? E a partir daí a senhora entrou em contanto com a poesia brasileira?
Sophia: Não. Eu já tinha lido o Manuel Bandeira. Já tinha lido vários poetas brasileiros. É que nesse tempo havia uma relação muito mais próxima, sabe? Porque o mundo não estava tão confuso como agora. Sai tanto livro. Sai tanta confusão. Agora um poeta se projecta, fala-se de sua obra, não é porque escreveu livros bons. É porque tem uma boa pessoa encarregada de sua propaganda.
Maria: De preparação na mídia, nos jornais. É verdade.
Sophia: Naquele tempo não. Vinha um amigo que dizia assim: - "Li ontem um poeta brasileiro extraordinário". Ele não tinha nada a ver com propaganda alguma. Mas a gente, se queria, lia o livro.
Maria: E a senhora considera importante esta relação entre a poesia portuguesa e brasileira?Sophia: Bem, eu considero importante a relação entre toda a poesia. A portuguesa com a brasileira é importante, como é importante a relação com a poesia africana. A poesia moçambicana é óptima, não é? Porque são países que falam português. Quer dizer, tem uma experiência de linguagem falada, de uma língua só.
Maria: E agora, ultimamente a senhora fez O Búzio de Cós, o último livro publicado foi O Búzio de Cós. E continua escrevendo?
Sophia: Sim, continuo.
Maria: E o sentido do trágico? A sua poesia é trágica, no sentido grego... A senhora se considera da mesma tradição de Fernando Pessoa?
Sophia: Não acho muito parecido com a tradição do Pessoa não. ( pausa longa ) O pessoa é um homem que para escrever renunciou a viver. Isso não se parece comigo nem com o João Cabral, não é?
Maria: A sua é uma poesia de quem vive, não é?
Sophia: Sim. É uma poesia de quem vive.
Maria: A senhora tem um artigo, um ensaio, sobre a Cecília Meirelles.
Sophia: Tenho. Foi o primeiro artigo que fiz na minha vida, não é mesmo? Porque eu não gostava nada de artigos. Mesmo hoje em dia não gosto nada. Mas naquela época eu gostava menos, sabe?Maria: E por que escreveu sobre a Cecília?
Sophia: Porque havia uma homenagem à Cecília e me convidaram para ir. Então eu fiz o artigo. Correu bem. Houve muita palma na minha intervenção. Mas a Cecília não foi, você sabe? Então aconteceu uma coisa, uma história engraçada. Ela não foi porque tinha uma amiga - agora se pode dizer porque a Cecília já morreu e a amiga também. E a amiga dela era uma mulher feia, fazia muita intriga. E disse à Cecília que éramos comunistas. A Cecília teve medo. Tratou a sério e não veio. Eu fui e também li os poemas dela. Depois ela ficou um bocado escandalizada, não é? Então a Cecília no Natal mandou uma grande caixa com frutos de natal, sabe? Frutas secas, nozes, essas coisas de natal. Você sabe que todos os natais eu ponho na árvore de natal ainda hoje? Mas eu nunca agradeci à Cecília.
Maria: Foi um equívoco que aconteceu entre vocês. Lamentável.
Sophia: (Levantando-se para pegar o segundo cigarro). Foi pateta. Mas é melhor perdoar, não? ( longo silêncio.

Sophia levanta-se, pega a carteira de cigarros na mesa em frente ao sofá e leva para o seu escritório, contíguo à sala onde estamos sentadas). Vou guardar para não fumar mais. Fumo muito pouco. Eu tenho muito pouco cigarro. É uma coisa terrível, porque não se vendem cá estes cigarros. Então quando vem um amigo, me traz.
Maria: Ah! Não se vendem aqui em Portugal?
Sophia: É. E também tenho que fumar pouco, não é? Então meus amigos dizem-me assim: - "Eu mando pouco para você fumar pouco." [Espero. Depois de instantes, Sophia retorna com um cigarro, que mantém apagado.]
Maria: A fonte de sua poesia é Portugal, o mundo ou é interior?
Sophia: Daí eu não sei a diferença entre interior e exterior. Eu vejo com os olhos, ouço com os ouvidos, como com os dentes, sinto com o nariz. Quanto a minha poesia, é Portugal, é interior e é exterior. Tenho uma parte intelectual, evidentemente. Tem uma parte de cultura, tem uma parte intelectual. Mas tem uma parte vivida, não é?
Maria: E a senhora teria uma definição para a atitude poética?Sophia: Não, não é possível.Maria: É fazer.
Sophia: É.
Maria: E suas fontes, referências dentro da poesia, da tradição poética?
Sophia: ( partindo o cigarro ao meio e me oferecendo metade ) Quer?
Maria: Não.Sophia: Eu parto aqui ( dividindo um cigarro entre 2/3 e 1/3 ) É que até aqui não se fuma ( apontando a parte do cigarro que, por incluir o filtro, focou maior). Esta parte não se fuma, não é? Se eu partir aqui ( aponta o meio do cigarro ) não fica nada (risos ).Maria: Eu parei de fumar. Mas de vez em quando fumo um pouquinho.
Sophia (acendendo o meu cigarro e o dela) Estou muito mesquinha hoje. Estou um bocado cansada.
Maria: Quer parar?
Sophia: Não. Daqui mais um quarto de hora.
Maria: Então a senhora estava falando das referências. Eu perguntei sobre as referências poéticas da senhora.
Sophia: ( pausa, Sophia dá uma longa tragada) Pois, o que é que você chama de referências poéticas, ter lido Homero? Ter lido João Cabral?
Maria: SimSophia: Eu acho que é muito mal um poeta que só lê o que escreve. Mas há muito poeta assim hoje em dia, não é? Por isso é que a literatura moderna está tão confusa...O texto mais bonito do Saramago é um artigo não muito longo que ele publicou quando teve o prémio. Ele fala da sua relação com o avô quando era pequeno. É muito bonito. É o texto mais nostálgico e mais poético que o Saramago escreveu. É um texto que ele fala da sua própria vida. Ele fala o que os livros não falam ou se falam, falam de uma outra maneira.Maria: Actualmente em Portugal se faz muita poesia boa?
Sophia: Há poetas bons, sim. António Ramos Rosa é muito bom, e outros bons poetas.
Maria: A senhora considera a língua portuguesa uma língua boa para se tratar de poesia?
Sophia: Eu penso que sim. Porque é uma língua que tem uma grande dificuldade em dizer tudo. Falar com tudo, não é. Não é uma língua estereotipada como é um pouco o francês e o inglês. No inglês há muita coisa compacta. O inglês é muito rico, mas tem que ser num único sentido. Em inglês deve-se começar o verso pela primeira pessoa. Eu sei porque tenho colaborado com escritores que me traduziram. Faz muita diferença. A única língua na qual se pode traduzir bem o poeta português é o italiano. Porque é a mesma organização da frase, não é?
Maria: Interessante esta relação da língua portuguesa com outras. Porque também me parece que a língua portuguesa tem possibilidades extraordinárias.
Sophia: Sim, porque tem uma capacidade de dizer, de formar novas palavras.Maria: Um pouco como o alemão, talvez?
Sophia: É.

Maria: O que é ser poeta hoje? Porque o mundo está tão confuso, tão fragmentário...tem lugar para o poeta hoje?
Sophia: Eu penso que tem, se ele arranja. Evidentemente que é importante que elas encontrem o eco da sua voz. (Toca o telefone, Sophia atende, era engano)
Maria: Este livro aqui foi encontrado entre os escritos de Fernando Pessoa, O que o turista deve ver em Lisboa . Foi encontrado há uns dez anos.
Sophia: Está escrito em que língua?
Maria: Ele foi escrito originalmente em inglês, mas esta edição é bilingue.
Sophia: Ah! Muito bom, muito interessante.
Maria: Porque ele achava que o povo português precisava ser mais respeitado dentro da Europa.
Sophia: Pois acontece uma coisa, sabe? Nós gostamos muito da Espanha, da arte espanhola. E o espanhol tem feitos extraordinários. Mas o espanhol é muito afirmativo, tem a mania de negar o outro. E eles têm feito uma política muito antiportuguesa. E eles atrás dos portugueses descobrindo a mesma coisa que os portugueses já tinham descoberto. E é preciso lembrar que as caravelas portuguesas que iam para os descobrimentos os espanhóis saqueavam na volta e mesmo na ida.
Maria: É também muito curioso que grande parte dos poetas contemporâneos importantes sejam poetas de língua portuguesa, não é? O Fernando Pessoa, a senhora, o Jorge de Sena...Mesmo poetas brasileiros importantes como Jorge de Lima, João Cabral...
Sophia: Você vê como o João Cabral usa a língua portuguesa - ele usa e quer usar - muito como Camões. Aqueles poemas conhecidos do Camões, da Índia, são poemas que brincam muito com a palavra. É muito parecido com o João Cabral.
Maria: E o seu exercício poético é também brincar com as palavras?
Sophia: É, sim. Jogo. Há muita parte de jogo, sim. Eu acho que o melhor momento da escrita do poema é quando as pessoas começam a sentir as palavras moverem-se sozinhas, sabe? E a brincarem umas com as outras. Andar a procura da rima, andar a procura do tempo, a procura da consonância, não é?



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